Sunday, January 30, 2005

Medo, adjetivo proverbial

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Litogravura do acervo do Museu de Phoenix, Arizona

Bibendum, eu não sabia, é o nome do boneco de pneus que é o logo da Michelin desde o remotíssimo ano de 1894. Eu disse: 1894. O boneco é uma lenda do marketing e por isso é que não poderia deixar de constar em Pattern Recognition (Reconhecimento de Padrões), livro de William Gibson que disseca nossa cultura de mass media, marketing global e cultura wébica com a lingüagem que se usa na própria. Lovely.

Confesso que estou um pouco (talvez um muito) contaminada pelo terror e náusea quanto ao boneco/personagem Bibendum experimentados por Cayce Pollard em Pattern Recognition. Mas sinceramente, QUEM, em estado de sanidade média, gostaria de fazer suas refeições olhando para o vitral de Bibendum, na Michelin House, London, UK? Não esqueça, Cliente Amigo, "also available as a unique venue for weddings or events!!!!!!!!!!!!!"

Admito: estou amando cada minuto. Fright me and I'll desesperately fall in love. (isso sem mencionar o tesão absurdo que tenho em monstros tipo este aqui)

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"Nela está o boneco da Michelin, em uma de suas manifestações mais antigas, mais assustadoras e que mais reviram o estômago, não a Tartaruga Ninja com jeito de verme inchado de hoje em dia, mas aquela estranha criatura mais velha, fumando charuto, com cara de doidona, que sugeria uma múmia com elefantíase." - Reconhecimento de Padrões, William Gibson, Tradução de Fábio Fernandes, Editora Aleph, 2004, p. 116

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She's got a ticket to ride with the Freaky Sicky Mummy

A história desse ícone você encontra aqui, em francês, e aqui, em português.

Aqui, o primeiro escrito *googlável* sobre Pattern Recognition.


Friday, January 28, 2005

Nikita, far from home

Amiga, manda o referido e-mail para a minha casa... talvez o outro provedor seja mais sensível à nossa amizade e receba a mensagem...

Daqui a pouco vou ter que me mandar daqui, se não fico presa nesta espelunca...

Como não amá-la? Como não morrer de saudades dela? Beijos em você, Flaminga Cor-de-Rosa!

Nas dobras da noite

Nesta noite, sonhei que estava na rua dos meus pais e me encontrava com um senhor que me levou a vastas emoções e pensamentos imperfeitos para depois sapatear sobre meu pobre coração partido. Ele portava uma basta cabeleira à Príncipe Valente (!), só que pintada de acaju (!!!) - o que é muito estranho, porque ele é, digamos, semicalvo.

Estacionado ali perto estava o carro dele (que, como todo menino, adora carros). Algo como uma Maserati hiperfuturista de design retrô, angulosa, linhas retas, de uma linda linda cor de verde-menta-mar-metálico. Ele mirava-me de esguelha, por cima do ombro, com olhos magoados, derivando uma dor que veio daquela doçura de outrora que não volta mais. Não virou seu corpo em minha direção. Nem uma única vez. Porém tampouco parou de olhar-me por sobre o ombro. Nem uma única vez.

Príncipe Valente, Mefisto mandou-me dizer-lhe: it's time to let go.
De talismã, leve meu beijo. Boa sorte.

Thursday, January 27, 2005

She ain't heavy. She's my mother.

Hoje é um dia tão feliz porque hoje minha mãe ligou para mim e falou com doçura, como não ouvia talvez há uns bons 25 anos. Não foi ontem, nem amanhã, foi hoje, e hoje o meu ouvido está suave, pingando mel.

Disse-me ela que gostou dos biscoitinhos da confeitaria especialíssima, que mandei pela Claudia, e contou como só ela sabe, essa Sherazade extraviada, os emocionantes acontecimentos do Forum Social Mundial. A voz melodiosa de ave canora ia narrando, com inflexões cristalinas e risadas pontuais, a invasão do prédio público ali perto e o fato de que os polícias não puderam usar força nenhuma contra os sem-teto, porque um bando de foro-socio-mundenses de várias nacionalidades resolveu participar e, sendo estrangeiros, em pleno FSM, houve todo aquele constrangimento.
Ela gostou também, muito, da Marcha do FSM, que passou sob sua janela - ela que agora sente tantas dores e quase não sai de casa, ela que sempre venerou a liberdade como se fosse ave e que agora não pode ir à confeitaria especialíssima satisfazer seus doces apetites de menina pequena. Disse, da Marcha, que "vinha um dragão chinês, encaraminholando-se pela rua, e várias bandeiras, e cartazes, todo mundo querendo tudo! queremos aborto, queremos dinheiro, queremos água... e as bandeiras dos gays, que lindas, com o arco-íris, de todas as formas, arco-íris para cima, em pé, deitado, em losangos que se esparramam".

Mãe, os cartazes e bandeiras dos gays só podem ser lindos e coloridos. Porque brigam e sangram e lutam e sofrem tanto por causa do amor. Que deveria ser lindo e livre e que é tão condenado.

Tudo o que o mundo precisa é de amor, de doçura, mãe. E eu também.

Wednesday, January 26, 2005

Future, now.

William Gibson revolucionou o mundinho sci-fi ao escrever Neuromancer, em meados da década de 80, quando inaugurou o gênero batizado de cyberpunk, tendo por parceiros Bruce Sterling e John Shirley - parceria mesmo: chegou mesmo a escrever um livro juntamente com Sterling.

Se Neuromancer é a história da gênese do novo/velho homem em um velho/novo mundo, trazendo ainda que superficialmente, as intensas contradições filosóficas da humanidade e utilizando alegorias e adereços tal qual carnavalesco de escol, Pattern Recognition é o seu intervalo comercial.

Em Pattern Recognition, Gibson flerta com a prosa e seduz as palavras como um fauno cercando uma ninfa. Se no começo elas se apresentam tensas e arredias, é só para trazer mais encanto à rendição. É a história de uma profissional, digamos, da mídia, cujo excepcional talento - sua extrema hipersensibilidade - é também sua maior fonte de problemas. A trama se desenvolve nowadays, com a tecnologia que hoje temos. Trata sobre a misteriosa existência de um filme, cujos fragmentos são paulatinamente liberados na net. *O Filme*, como é chamado, não é dado a conhecer ao leitor, que sabe tanto quanto os protagonistas - ou seja, nada. Seria *O Filme* a quimera por todos almejada, o ideal inalcançável, ou seriam apenas moinhos quixotescos? Vêem os personagens n'*O Filme* aquilo que ele efetivamente tem ou veriam somente o que querem ver?

Não tenho a resposta. Ainda não acabei a leitura. De fato, mal a comecei.
E estou apaixonada por Gibson, ensandecido de fúria iconoclasta mercantilista, analisando o consumismo com a mais ácida ironia. Just *luvly*!

parece-me que Monalisa Overdrive é muito mais matrix do que a própria Matrix.

Tuesday, January 25, 2005

Behavioral Innuendo

... e depois de todo o chororô de 72 horas interruptas - por óbvio. Se chorasse ininterruptamente já estava baixada no hospital com desidratação - o cérebro rebelou-se e fez a revolução: "pense, mona, pense!"

Ora, quem vai querer estar perto de uma criatura ranhenta e fungante, com olhos pidões de cachorro chutado, descabelada, desmazelada, desesperada? Resposta: 1) um sádico; 2) um insuficiente que precisa de pobres criaturas ranhentas e fungantes babando e soluçando no seu colo full time para sentir-se grande e forte.

"Você quer isso, mona? Um sádico? Um insuficiente?" NÃÃÃÃO!

Portanto, torci o paninho das lágrimas guardadas durante o deslocamento trabalho-casa, para intensa curiosidade dos transeuntes (é, quando eu choro, choro MEEESMO). Desembarcada at homeland, abasteci a despensa e chamei o gajo para jantar (controlando a voz roufenha soluçante).

Esperei-o lavada, perfumada, penteada, maquiada, montada, equilibrada sobre scarpins fetish-style, sorrindo lábios de gloss como Pamela Anderson, segurando uma taça de delicioso vinho porteño. No underwear.

Agora? Ah, tá tudo muito bem, 'brigada! (hihihihihihiii.....)

Behave yourself - this is the hype.

Beguin the beguine - Efeito Closer

No innuendo transportológico de toujours, vim pensando em você e quando foi que pensar em nós deixou de ser pensar em nós para ser pensar em você.

Inundada de lembranças de quando o que você gostava estava em mim. A doçura e a beleza e o encanto.

Beauty is ALL in the eye of the beholder, indeed. Always.

Que erro crasso. Sorry.

Monday, January 24, 2005

Don't stand so close to me

closer

Closer é a mais nova façanha de Mike Nichols, que há tempos não façanhava tão bem. Mas vamos combinar que com Clive Owen na sua melhor forma e com os talentosos olhos oblíquos desparceirados de Natalie Portman, ficou fácil. Ou menos difícil.

É um filme sobre relacionamentos que consegue não matar o espectador de tédio. Cativa pela sua simplicidade e percuciente franqueza, muito mais *a vida como ela é* do que a minissérie nelsonrodrigueana do Fantástico de tempos idos conseguiu arremedar.

O plot se desenvolve sobre a aproximação dos elementos que formam os casais primários e o distanciamento que os levará a constituir os casais secundários do filme. A questão quatrilhesca do troca-troca instiga as pessoas a assistir, mas isso não é - repito: não é - o que o filme tem de visceral. Mike Nichols despe as pessoas (dos personagens) de si mesmas e as exibe numa total crueza de máscaras e riqueza de contradições.

Prepare-se para se ver na tela. E não gostar.

closer2
It smells like heaven, babe.

Opiniõezinhas:
--> Jude Law trabalha magistralmente - seu personagem é totalmente detestável.
--> Clive Owen é *O Homem*, period. Meu número. Vai ser bom assim lá em casa.
--> Julia Roberts é sempre Julia Roberts, e todo mundo - eu inclusive - fica esperando demais da moça depois de Erin Brockovitch. Ela está soberba como a mulher fraca fantasiada de forte.
--> Natalie Portman é um caso a parte. Ela é adorável em todos os sentidos. Daquele corpinho angelical e miúdo emana uma força assustadora quando em cena. É uma das grandes atrizes norteamericanas, independentemente do rumo que sua carreira tome ou do que a crítica venha a dizer.

Sugestãozinha do dia:
--> Vá com tu pareja e somente se o relacionamento estiver bem estabilizado *E* em boa fase - ou se a pareja for ocasional e vocês estiverem interessados apenas no corpinho um do outro. Do contrário, vocês poderão passar semanas em uma nauseante DR muda e tácita.

Thursday, January 20, 2005

What fashion a woman wants? (illustrated, Rio Fashion Freak Inverno 2005)

Amo meu corpo - www.bancadecamisetas.com.br
Banca de Camisetas - www.bancadecamisetas.com.br
Uma mulher quer ficar bem consigo mesma, sentir-se bem na própria pele.


Animale 2
Animale, Rio Fashion Freak Inverno 2005
Uma mulher quer usar botas de salto *E* cano altos. Bem trendy e coloridas.



Animale 1
Animale, Rio Fashion Freak Inverno 2005
Uma mulher quer vestir oncinha. Quer usar saias, cores, blusas delicadas, estampas extravagantes e penas de pássaro. E ouvir elogios. Claro.



Walter Rodrigues 1
Walter Rodrigues, Rio Fashion Freak Inverno 2005
Uma mulher às vezes quer ser (ou só sentir-se) uma Dominatrix. É básico.



Drosófila
Drosófila, Rio Fashion Freak Inverno 2005
Uma mulher quer poder voltar às raízes, usar roupas confortáveis e com significado (mas não com essa maquiagem, for lóve).



SuperLucy 1
Super Lucy in the Sky, Rio Fashion Freak Inverno 2005
Uma mulher às vezes quer ser uma menininha.


Colcci 1
Colcci, Rio Fashion Freak Inverno 2005
Uma mulher quer parecer tão jovial quanto se sente.


Cavendish
Cavendish, Rio Fashion Freak Inverno 2005
Uma mulher quer ser uma inglesinha.


Walter Rodrigues 2
Walter Rodrigues, Rio Fashion Freak Inverno 2005
Uma mulher quer - e agora sente-se livre para isso - vestir-se de mulher.


CORRIGINDO --> a expressão "Fashion Freak" é trademark de Madame Chanelta

Self-deprecative

Beco 2
Isso, amiguinhos, é um flyer para um lugar bossa-maldito recém-nascido aqui nesse lugar onde (sobre)vivo.
Perceba a marcante agressividade subjacente nas palavras de baixíssimo calão - definitivamente péssimo, faz a pessoa ter vontade de NÃO ir, de sair correndo na direção oposta. Medo.
Perceba o traço naïf-minimalista, primitivo meesmo (tudo jogado no flyer, como orégano em pizza).
Perceba, ainda, que estão chamando o gatinho de "esquilo". É trendy se equivocar com as coisas hoje, né?

OK, a proposta é alternativa. Que bom, adoro! Só não confunda "alternativo" com "bagunçado" ou com "malfeito". Ou então *eu* preciso rever meus conceitos.

Spleen

O tempo ia passando ela ia pensando que nada daquilo estava valendo muito. Era todo o dia a mesma coisa, dificuldade para dormir, dificuldade para acordar, dificuldade para fazer qualquer coisa, a dor surda-muda-cega que calava no peito, nas costas, na base da coluna, nas pernas, nos quadris e subia como um foguete para a cabeça, onde perdia todo o pudor e se punha a uivar como prima-dona, como pomba-gira.

Todos os escapes, tudo o que fazia e pensava para não encarar a face cinzenta da vida. Para não levar às últimas conseqüências. Para não chegar ao momento limite, porque, e depois? O que seria de todos eles, dela mesma, se no confronto cara-a-cara ela saísse perdedora? Assim ia, empurrando os dias com a barriga que não parava de aumentar, morrendo um muito a cada dia. Sentindo todo o seu ser fenecer naquelas horríveis retrospectivas no caminho do trabalho, quando caía em si que os anos que deveriam ter sido doces tinham gosto de hóstia e foram engolidos e deglutidos sem nenhum amor. Olhando-se no espelho, cansada de guerra, percebia em si cada vez mais aquilo que mais repudiara e enojava-se da sua fraqueza. Mas a repulsa, em vez de gerar a raiva purificadora que impeliria seus pés a caminho do SIM!, apenas lhe abatia mais e mais, adormecendo os sentidos que fechavam apertado os olhos no meio de tanta decadência. Amargurada e entorpecida, ia para a cama. Porque amanhã não é outro dia,

amanhã é mais um dia, mais um dia, mais um dia, mais um dia, mais um dia, mais um dia, mais um dia, mais um dia, mais um dia, mais um dia, mais um dia, mais um dia, mais um dia, mais um dia, mais um dia, mais um dia, mais um dia, mais um dia, mais um dia, mais um dia, mais um dia, mais um dia, mais um dia, mais um dia, mais um dia, mais um dia, mais um dia, mais um dia, mais um dia...

Wednesday, January 19, 2005

Blogspot, blah!

Tinha um post extenso aqui. Ele foi devorado pelo blogspot. Hmpffffff...

Então fica só o recado: logo mais vou às caixinhas de comments comentar os comentários!

Kÿssar.

Saturday, January 15, 2005

Living to let die

Watching him dash away, swinging an old bouquet of dead roses
Sake and strange divine
Sadden glissando strings

Battle cries and champagne just in time for sunrise

Thursday, January 13, 2005

Pelux Carb United
Just a city *clown* born and raised in South Detroit


(Update: Já tô cheia de problema e você mandando assim. Tsc.)

(Update do update: gracias a la vida que me hay dado tanto)

Wednesday, January 12, 2005

Feeling Trendy

Reinaldo Lourenço 1
Imagem do site Moda Brasil

Gostou? Eu também. Muito. Estou usando exatamente essa aí, agorinha mesmo.

Feels good! Low profile consumer, è vero. So what?

Mais Reinaldo Lourenço aqui. Bonito site, bem informativo.

Monday, January 10, 2005

Momentiño Lagoa Azul

nocteluca
Capão da Canoa, entre 5h e 6h do dia 10.01.2005

Brooke Shields e Christopher Atkins (por onde andará) protagonizaram - na verdade, eram quase todo o elenco do filme - a historinha melosa de jovens priminhos vitorianos que naufragam e passam a viver numa ilha paradisíaca. Como todo paraíso, esse também tem maçã e castigo: eles efetivamente furunfam lindamente por toda aquela ilha, comendo muita manga, sem se preocupar com toda essa chatice de inserção social, trabalhar, comportar-se, casar-procriar-morrer e blablablablablabla. E terminam sendo resgatados pela nojenta civilização que provavelmente os condenará (por serem tão lindos, bronzeados, felizes) e os separará (os primos furunfentos, oh! escândalo).

Mas enquanto tudo ainda era oba-oba, numa bela noite a priminha Brooke Shields sai para tomar banho de mar pelada, suprema delícia, e o mar está purpurinado, paetizado, cintilante. Era a minha cena preferida, ela refestelando-se na água na maior alegria e o priminho Atkins olhando, maravilhado.

Pois agora *você*, leitor amigo, pode ter também o seu Momento Lagoa Azul. Venha para as paradisíacas (haha!) praias do southern south of Brazil e mergulhe num mar neón cintilante.

Tudo culpa das Noctelucas, algas azuis que são autófotas.

Mais informações aqui, nesse link regionalista sim senhora, Dona Camomila. :D

E, se você concorda com a mídia histérica que apregoa loucamente que o sul é um celeiro de beldades, sua companhia paradisíaca estará garantida.

Sunday, January 09, 2005

Princesas de Ébano

Tinha então seis anos e ia entrar em novo colégio, para cursar a 1ª série do 1º grau (que hoje se chama ensino fundamental). Entrando também estava Maria Valéria, a única pessoa preta da turma. Ela levava os cabelos longos presos em trancinhas mas mesmo assim dava para ver que eles eram supercrespos - aquilo que, quem já morou em vila como eu, sabe que o povo chama de "cabelo ruim". Maria Valéria tinha a mesma idade que nós e estava banguela como todo mundo, e era só. Ela cometera a suprema heresia de nascer fêmea, preta e pobre.

Incrível a empatia que os humanos têm para o mal: era o primeiro dia de aula, quando se inicia a negociação de grupos e territórios, que poderá durar uma semana, um mês, até um semestre, mas não precisou haver negociação nenhuma para que a turma inteirinha, composta de WASPzinhos tupiniquins, decidisse em mudo assentimento que éramos *nós* contra *ela*. Assim foi, amen, e Maria Valéria, com seu jeito doce e sorriso fácil não conseguiu outra coisa senão desprezo e vileza de todos nós.

Ríamos das suas roupinhas meio tacanhas. Sussurravam as meninas no banheiro sobre o "cheiro" de Maria Valéria. Vários prendiam o nariz acintosamente ao passar por ela, que limitava-se a mirar o ofensor com olhos cheios de mágoa, como um cão que sabe que não pode reagir à agressão do homem porque está em tremenda desvantagem. Maria Valéria não tinha quase dinheiro e usava os lápis da caixinha dos perdidos para fazer seus desenhos. Como nenhuma criança perde lápis de cores fortes e chamativas, como vermelhos e verdes, as ilustrações de Maria Valéria traziam sempre cores fechadas em combinações funéreas: o céu violeta, a terra marrom, as pessoas pretas, todas pretas, com roupas pretas. Porque em algum lugar deveria haver iguais.

A mãe de Maria Valéria levava e buscava a pequena na escola todos os dias. Eu olhava respeitosa, assombrada e muda de vergonha para aquela Grace Jones, muito elegante em seus lindos e marcantes traços de princesa de ébano. Nos olhava brincando com a filha e eu sabia que ela sabia de todas as nossas perversões, do quanto éramos maus, cruéis, hediondamente maquiavélicos com sua menininha. Percebia que ela sentia que a alegria que tínhamos ao brincar de pega-pega com Maria Valéria era ruim porque só a aceitávamos na brincadeira se ela fosse o pegador em todas as vezes. Ela concordava sempre, sempre doce, sempre sorrindo seus dentes muito brancos de princesinha de ébano.

Na segunda série, Maria Valéria não estava mais lá. Talvez sua mãe Grace Jones tenha concluído que não valia a pena pagar para ter a filha maltratada. Talvez tenha depreendido que é por demais difícil vencer a maldade desse mundo, esse Grão Negro que trazemos de fábrica e que germina fácil. Senti um tremendo alívio, porque não precisaria enfrentar todo o dia o mesmo dilema: seguir os quase raivosos conselhos de minha mãe, que dizia que Maria Valéria era igual a mim e tratá-la como eu sabia (sim, eu sabia) que ela devia ser tratada ou juntar-me à turba e espezinhá-la, como era nosso costume. Eu oscilava loucamente entre esses dois extremos, o que fazia Maria Valéria muito curiosa. Geralmente, era a mim que ela se achegava, seus olhos dizendo "sim, eu sei, você me bate mas também me afaga, você me despreza mas também me alimenta, e se esse é o seu preço, OK, eu posso pagar". Quando ela me vinha, vinha-me também uma terrível vergonha de não repudiá-la e uma raiva cega que eu ainda não sabia do quê.

Vindo para cá de trem num calor opressivo, sentaram-se perto de mim uma esguia princesa de ébano e toda sua (vasta) prole de meninos de chocolate. Uma senhora, também negra, surpreendeu-me olhando para o mais arredio dos garotinhos com grande ternura. A senhora sorriu, pensando talvez que eu era boa. Ela estava enganada. O que eu fiz a Maria Valéria e tudo o que permiti que todos os meus nefastos coleguinhas fizessem não se apaga por olhar uma criança com carinho. Sim, eu carrego essa culpa e sim, ela não é expiável. Não há como saldá-la, quitá-la. O mal que fazemos não tem volta.

Maria Valéria talvez hoje seja uma mulher de negócios, uma dona de casa, uma mãe, uma amante, uma vendedora da Daslu, uma promotora de eventos, uma juíza de direito, uma CEO, uma gari de limpeza urbana, uma veterinária. Eu nunca vou saber, vinte e dois anos passados.

Maria Valéria é uma princesa guerreira e em todo esse cipoal de mágoa que carrego por tudo o que lhe fiz de mau e o que não lhe fiz de bom, desejo muito forte e muito fundo que ela nunca mais deixe que ninguém lhe pise. Que ela honre sua dinastia. Que guarde bem guardado, somente para os que a merecerem, aquele inesquecível sorriso alvo em que até os doces olhos cor de avelã sorriem.

Friday, January 07, 2005

JANUS JUMPS

Blog *IS* literature. Period.

Petit Pois

--> No primeiro dia do ano, a linda blusinha lingerie-styled de cetim e rendas que estreei no reveillon saiu voando pela janela e nunca mais voltou. Fiz beiço, lacrimejei e lamentei-me como uma sarracena. Uma das prioridades para 2005 é aprender a elaborar perdas - especialmente as patéticas e puramente materiais - e deixar o passado definitivamente para trás.

--> Não conheço (ainda) nenhuma Denise que não mereça toda minha admiração e carinho. O nome é uma derivação de Dionísio. Fico pensando se Denises seriam as Bacantes - estaria explicado o bom humor e a verve com que levam a vida. Saudades de você, Nikita. O pouco que nos vimos no final do ano foi mesmo muito pouquinho.

--> Um dos réus nesse processo aqui tem o nome fantasia de, digamos, Thythãns Orghanyzzaçhõnss Konsulthõres. Com essa redação, esses acentos, no contrato social, nos estatutos *E* como legenda de *todas* as assinaturas.
Simplesmente não consigo fazer a decisão. São síncopes de riso a cada leitura do nome desse réu. Omigod.
E depois dizem que português é uma língua morta.

--> Eu adoro ter aliadas. Transformei a chefe-mor do serviço aqui em aliada, na exata acepção do termo: nós não tomamos chazinho, nós não fazemos fofoca. Nós traçamos estratégias. Claras, firmes, objetivas e de conhecimento geral. Isso sim é mulher no poder, amigos, não aquela ridícula luta-livre intelectual-profissional de fêmeas furiosas no gel (que só serve para os chauvinistas darem gargalhada).

--> A loja da L'Occitane nesta província onde resido me levou à loucura. Já conhecia os produtos, mas não deixa de ter um impacto fulminante vê-los todos juntos. Em uma palavra: Néroli.

--> Janeiro de 2005, bonitonas voltam ao mercado em embalagem repaginada: Luma de Oliveira, descasada, posando pela 2689ª vez para a Playboy como Estrela do Mês; Luize Altenhofen, desnamorada, na capa (e no recheio) da VIP. Ou o ciúme de namorados, maridos e afins não permite que as beldades cumpram seu destino biológico de incrementar a paisagem ou a revista masculina efetivamente funciona para a retratada como meio de conhecer gente interessante - vide Barbara Bach, que casou-se com Ringo Starr porque ele ficou apoplético perante as lindas fotos da bonitona em estado natural.

--> Quero mesmo é ver Natalie Portman como stripper, em Closer. Aqueles olhos lindamente assimétricos têm muito a dizer (a little off-topic: gosto da Julia Roberts loira).

--> Vai trabalhar, vagabunda. Vai trabalhar, porcaria.

Wednesday, January 05, 2005

Flesh + Blood - Parte I

Mike Falatine's Feed on Silicon Breast

Vergílio tinha conhecido sua mãe. Diferentemente do que ocorrera à esmagadora maioria da população adulta jovem que sobrevivia naquela megalópole, a mãe de Vergílio lhe carregara no próprio corpo, como faziam Os Antigos em tempos imemoriais e incivilizados. Ele fora concebido, longamente aguardado e introduzido ao mundo de uma forma que havia sido abandonada há muito, inclusive pelos animais - há muito todos se reproduziam somente in vitro, de forma higiênica e segura.

Ao nascer, Vergílio fora parcamente limpo e posto para sugar o seio da mãe, que o carregara durante a aberrantemente longa gestação de nove meses. O Fluido saíra fácil do seio da mulher e foi assim que ela o alimentou, numa espécie de canibalização inaceitável nos dias de hoje. Vergílio era temido: não era natural uma pessoa nascer dessa forma e, ainda, continuar vivendo. Esperavam-se dele comportamentos desviantes e degradação biológica. Os jovenzinhos fitavam-no com assombro, comentando, de olhos arregalados, sobre antigas histórias de seres humanos que viravam monstros por causa do plenilúnio ou por ingerirem substâncias químicas preparadas em sombrios laboratórios. Vergílio, já habituado às mudas repreensões, limitava-se a caminhar pelos estreitos passadiços das vias de alta velocidade, conduzindo o corpo esguio e flexível como quem porta uma rara jóia.

Ele conhecia os mistérios da carne. Sabia como era o cheiro do corpo de uma mãe e havia provado O Fluido que o seio delas produzia. Por três anos, a mãe de Vergílio puxou-o ao regaço, sussurrando-lhe a Mitologia dos Antigos enquanto ele sugava. Vergílio sempre soubera que as histórias aconteceram mesmo, não eram como as Lendas Biológicas engendradas pelos geniais profissionais da Bio Tech. Ele sabia sobre a carne e lembrava grandes trechos da Mitologia. Era um homem deveras perigoso.

(to be continued)

Tuesday, January 04, 2005

A difícil arte do bilboquê

bilboque
"Eu trouxe a corda só me falta a caçamba e sei que você tem ..."

O bilboquê é um jogo antigo e atávico - todos os povos o praticaram sem a necessidade de difusão de um para o outro (!). O bilboquê é uma distração metafísica que treina reflexos mediante a necessidade de equilibrar e lançar um receptáculo proporcionalmente grande, com um orifício pequeno, de modo que este se encaixe sobre uma base penetrante. O êxito ocorre quando, de qualquer forma, se der a penetração e penetrado permanecer o buraco pequeno do receptáculo grande.

A leitura do parágrafo já evidencia o desafio do bilboquê: por óbvio que seria muito mais fácil pegar a base penetrante rombuda e introduzi-la no buraco do receptáculo grande e voilá, você teria acabado de bilbocar - ao contrário e trapaceando, mas bilbocado mesmo assim. O bilboquê traz essa dificuldade que lhe é essencial e ele zomba do jogador que decide bilbocar ao contrário porque mais simples e exitoso. Durante toda a infância tive suprema raiva do zombante bilboquê e do eterno desafio que propunha, fitando-me soberano da estante de brinquedo: "topas?" Nunca gostei.

O atavismo da brincadeira bilboquiana não é outro senão aquele de outras metafísicas humanas, embora mais úmidas e interessantes (he). Para uma menina que abominava o bilboquê e que cultivou o (mau) hábito de pensar, a posição da amazona parece muito pouco prática do ponto de vista mecânico: ora, não é muito mais fácil bilbocar ao contrário? Não é verdade que, bilbocando ao inverso, possibilitam-se milhares de bilbocadas por segundo, com muito menos esforço e maior precisão? Então para que mexer em bilboquê que está ganhando?

Bastante óbvio que ninguém se entrega a atos metafísicos úmidos e selvagens para obter o máximo rendimento com o mínimo de estocadas e é por isso, e só por isso, que amazonas pouco habituadas cedem a pedidos sorridentes, propondo jogar o bilboquê da forma mais ortodoxa possível. Timidamente as moças explicam, em poucas palavras, serem péssimas jogadoras de bilboquê. Mas eles não ligam. Eles não querem ganhar, não estão interessados numa interação taylorista. Querem é se divertir com a coisa toda, ainda mais hilária e terna pela inépcia mecânica e expressão surpresa da menina redescobrindo-se e vencendo temores.

No game. Just play.

Sobre a origem do bilboquê, aqui.