Sunday, March 26, 2006

Allegro ma non troppo

Ela não sabia, mas ele era músico. Enquanto dela jorravam petições das pontas dos dedos de unhas esmaltadas de vinho-escuro, a dois quilômetros os dedos dele, sem esmalte algum (e graças a deus pelas pequenas gentilezas), acariciavam as teclas do piano de parede, fazendo aquela estranha amante de madeira e cordas emitir murmúrios, suspiros e gritos de gozo.
Da primeira vez que as mãos dele a tocaram não soube emitir sonido algum. Anos de brincadeiras desastradas de mãos destreinadas haviam desafinado seu corpo, de modo que em algum lugar distante e abafado ressoava alegre (e bem baixinho) o simulacro do som daquele afago. Pressentiram que havia trabalho a fazer e não tiveram mãos a medir: eram as mãos de músico descobrindo novas sonoridades naquela carne que já não era de menina, e mãos de operária das letras experimentando escalas e pequenas variações no corpo de quem se acostumara a tocar e não a ser tocado. A música exige muito. Há que se estudar, é preciso dedicação. Por isso, passavam horas, dias inteiros, fechados em quartos escuros, suando, comendo pouco, febris e ocupados com novas melodias. Às vezes, ele andava pela casa com a pele toda nua, na redescoberta liberdade dos seus próprios sons secretos, e ela sorria por tê-lo despido, claro e cansado, enchendo aquele lugar enorme com as harmonias de sua voz e de todos os sonhos mais espúrios que trocavam na calada da noite.