Monday, October 18, 2004

*Dé reáu*

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Era algo de enviesado, de oblíquo, aquele olhar. Os cabelos castanhos, muito lustrosos, cascateavam emoldurando o rosto. Acima da orelha começava o ondeado daquele mar de seda marrom-dourada, pouco abaixo da altura dos olhos grandes, de cílios enormes e negros, que espiavam de esguelha, cheios de cintilâncias e promessas.

Não sabia resistir àquele olhar. Mesmo descobrindo que ela era capaz das palavras mais ríspidas, dardejadas daqueles lábios cheios e suaves como flechas envenenadas. As sobrancelhas arrepiavam-se e do escuro dos olhos saltavam faíscas de pura fúria. Apertava-me o peito vê-la assim, tão diferente da menina carinhosa por quem me apaixonara. Procurava trazer um pouco de leveza para aqueles momentos, dizendo *desenferrusca essa cara! mas por que tanto ódio nesse coraçãozinho?*, esforçando-me em sorrir para ela o sorriso que ela mais gostava. Funcionou, por pouco tempo. E em pouco tempo chegou o dia em que o nó na garganta e o peso no peito se fizeram mais fortes, mais prementes, mais urgentes do que a urgência louca que aquele olhar oblíquo me despertava.

Nossos caminhos há muito haviam se afastado, cabia-nos apenas reconhecer o inevitável e proceder como pessoas adultas e sensatas.

Embora adulta, ela não foi nada sensata. A face transfigurava-se numa máscara de dor e desespero. Jorravam-lhe as lágrimas. Refulgiam centelhas de descontrole, de loucura até, naqueles olhos que outrora, mirando-me enviesado, transbordavam de amor. Assim permaneceu durante algum tempo.

Porém, quando nos reencontramos na Vara de Família, ela estava bela. Feições serenas. Pele bronzeada. E olhava oblíquo. Durante todo aquele tempo, somente quem tinha me olhado oblíquo era a mulher do canto direito da nota de dez reais. Dia após dia. Na carteira. No caixa automático. No empréstimo do colega. No troco do supermercado. Estava ela, transfigurada, convertida em papel, observando-me com o amor e o desejo que marcara nosso convívio. Perseguia-me. Poderia estar na praia, no cinema, no bar, na festa, na cama, com mulheres louras, ruivas, morenas, castanhas e ela acabaria por emergir de qualquer parte. Fitando-me obliquamente.

A audiência se realizou e dessa vez ela foi sensata. Até alegre. Olhava-me todo o tempo daquele jeito, de esguelha. E não era intencional, era somente o jeito dela de observar o mundo - assim, de cantinho. A saudade apertava e doía e pensava que não ia nunca me livrar daquele aperto, com ou sem ela.

Quando todos os ritos se encerraram ela sorriu, pronta para partir. Dessa vez, quem não estava pronto era eu. Busquei algum motivo para retê-la. Conversamos por um tempo. Ela foi doce, gentil e distante, como convinha. A ferida ardia cada vez mais forte e intensa. Fui embora.

Ainda ela me fita. Da nota de dez reais. Faz parte do meu cotidiano, como sempre quis ela. Como sempre quis eu.

Nesse aspecto, falhamos ambos em nos abandonarmos mutuamente.