Friday, October 08, 2004

De lagarta a borboleta

Era pequena, porém perspicaz. Brilhavam os olhos amendoados ao ouvir as explicações do pai, de por que a água fervia, borbulhava e fumaçava pelo bico da chaleira. Gostava de observar o gelo trincando no chá fervente, aquele momento onde todos eram ao mesmo tempo agora. Essencialmente iguais e intrinsecamente diferentes.

Percebera desde sempre o viés de transmutação no vão das coisas. Por isso, ao contemplá-las, sabia-as paradoxalmente efêmeras e permanentes. Deitava-se no colo da avó, acariciando delicadamente a pele suave que pendia dos braços magros e sentido toda História que dali emanava. Embora contrafeita, a avó nada dizia. Não gostava de ser lembrada da idade transcorrida, especialmente por aquela coisa pequena, roliça e firme. Mas sentia a doçura do veludo castanho dos olhos da pequena e do seu sorriso e esquecia o aborrecimento.

Desde sempre a Leitura acompanhara a menina e, aos poucos, aprendia a ver. Já não se zangava ou entristecia com certas coisas. Saltavam-lhe à vista os vincos impressos na face da mãe, que sabia decorrerem de longos e tristes períodos de espera e angústia na cabeceira de seus pais doentes. Percebera que nos olhos de mel dela habitava uma menina magra e miúda, muito sozinha, precisando de carinho e companhia. Notara que os rictos concêntricos do rosto do pai haviam aumentado depois da perda daquela outra filha. Sentira que dos olhos daquele homem passado em anos um menino angustiado e cheio de medos buscava, mudo, um sinal de aprovação. Sobressaía-se silenciosamente na avó uma mocinha cheia de paixão, algo cansada de esperar por aquele que, prometeram-lhe!, seria digno de seu amor. Lia cada vez com mais clareza a História das pessoas e, sorrindo, estendia as mãos para aquelas crianças, há tanto tempo sozinhas.

Observava a si e aos coleguinhas, ciente de que eram todos papiros virgens, onde a vida e o tempo se encarregariam de escrever a História. Curiosa, contemplava aquela gente toda, pensando o que aquelas carnes, então tenras, haveriam de contar algum dia.

Chegou o tempo em que lhe veio um pequeno papiro virgem, também ele acompanhado da Leitura, desde sempre. Ela relutava em admitir o inevitável - que a vida e o tempo produzissem suas chagas e fincassem seus cravos naquele corpinho puro. Por ser impossível de impedir, foi aos poucos soltando os braços, soltando as rédeas e deixando que o garotinho de olhos oblíquos e esverdeados tomasse pé e encontrasse seu rumo. Sabia que os lábios carnudos cor de romã dele iriam muitas vezes contrair-se num ricto de dor e decepção. Desejou fortemente que se abrissem muitas e muitas vezes mais em sorrisos luminosos, pronunciando palavras doces. E que as lágrimas, as lágrimas não fossem somente de tristeza.
Decidiu, ainda temerosa, ensinar-lhe o que tinha aprendido em anos de Leitura. Ele aprendia fácil. Estava tudo lá.

Passaram-se as horas, os anos. Ele vai. Mas sempre volta. E, nesses retornos, mergulham ambos nos olhos um do outro: ele se perde no veludo castanho dos olhos dela; ela corre livre na pradaria esverdeada dos olhos dele.

Não precisam mais de palavras.


Para Antonio.
Para Lya Luft.

1 Comments:

Blogger Ainda nao sei o que sou. said...

Estava sentindo saudade dos seus contos!
Esse serviu pra matar a vontade, e pra deixar esperando pelo próximo..
Beijinhos

10:49 PM  

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