Friday, March 11, 2005

Guilty as charged

Tania sempre soubera que alguma coisa no seu corpo se desprendia em ondas quando estava perto dos homens. Ela não era bela, mas tinha know-how. Suas insinuações de obscenidades veladas, seus sorrisos repletos de convites impronunciáveis contrastavam vivamente com a postura de classe e distanciamento que adotara para a vida. Despertava desejos febris o paradoxo de que aquela dama tão culta e refinada fosse capaz das maiores imundícies, e deleitando-se todo o tempo, e pedindo mais.

Fabrício era um cara simples, que ambicionava a simplicidade de uma vida simplificada. Sem anseios. Sem desejos. Sem disputas. Só a placidez de um dia após o outro, vendo o tempo passar como as águas mansas de um riacho oculto, sorvendo em largos goles os produtos da criatividade humana, em artes e livros e músicas e filmes. Experimentara algumas poucas aflições e angústias e decidiu que seria melhor se a afeição não fizesse parte do córrego tranqüilo da sua existência.

Até que encontrou Tania.

Ela fustigava-o com palpites e informações. Ela se aproximava e confundia-o com o calor do seu corpo e o cheiro do seu perfume. Ela fazia observações e ingerências até então impensáveis, muito arguta, muito aguda. Nos olhos de Tania dançava uma labareda louca, alimentada pela malícia do jogo de palavras e argumentos que sempre propunha e também por todas as promessas inconfessáveis que fazia sem nada dizer.

Fabricio sentia-se incomodado, invadido até, como alguém que dormia feliz e é acordado de supetão. Assustado. Alerta.

Sem perceber, começou a atentar para as formas femininas, as curvas, a maciez, o brilho dos olhos, a textura dos cabelos, o cheiro da pele. Pouco a pouco veio vindo em golfadas uma fome sem nome, ancestral, atávica, sentida apenas por aqueles que dormiram por muito tempo, tempo demais, até que se descobrem despertos. Passou a sorrir mais. Falar mais. Seus olhos adquiriram vida e brilho, mirando as fêmeas recém (re)descobertas com ares predatórios. Passou a sentir-se estimulado pelos desafios de Tania, passando horas a devanear como seria saciá-la, perder-se na sua ardência. Ela sorria, cheia de calor, sugerindo roupas e cortes de cabelo. Elogiava a camisa nova, o cabelo mais comprido e não perdia oportunidade de descansar a mão de longos dedos em seus braços, ombros, costas, num contato que inflamava ao toque e doía quando cessava.

Chegou o dia em que um homem que poderia ter saído de uma passarela parisiense veio buscar Tania, e beijou-a e tocou-a como se fosse sua, invadindo com cruel familiaridade todos os recônditos com que Fabricio sonhava de olhos abertos. Fabricio não olhou mais nos olhos de Tania, para que ela não visse a mágoa recém-descoberta (e o espanto dessa dor inesperada) e, principalmente, para ocultar o desejo sôfrego que só aumentava ao sabê-la alheia.

E, no dia seguinte, cortou os cabelos.

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Lindo, lindo, lindo. Adorei o texto. Deu vontade de ler tudim. Beijos.

4:49 PM  

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