Wednesday, September 22, 2004

Harpias

Jogo de futebol na quadra de grama sintética. Meninos fardados X meninos sem farda alguma. Os sem-farda não tinham camisas iguais, mas tinham namoradas que ficavam torcendo aos berros a cada jogo. Sempre da forma mais ofensiva possível ao adversário. Claro.

Naquela terça-feira abafada, véspera de feriado, o adversário eram os funcionários da gráfica. Era um time unido de trintões-quarentões, criados à la velha guarda e orgulhosos de suas camisetas amarelo-ovo. Não tinham a arrancada dos sem-farda-com-namorada, bem mais jovens, mas contavam com a garra, a ginga, a malemolência futebolística que só o time bem engendrado tem.

E lá vinham eles, arrasando os molequinhos desfardados, como um velho e enferrujado cortador de grama que, mesmo muito pesado e feio, patrolasse tudo o que vinha pela frente. Os desfardados não gostaram. As namoradas, menos ainda. Pimentinha, uma sardenta de nariz torto que compensava a assimetria do rosto com genial sagacidade, berrou ao ver o adversário levar a melhor num lance cruzado:

- Olha o quin-DÍÍÍÍM! Chuta o quin-DÍÍÍÍM! Mata o quin-DÍÍÍÍM! Não passa a bola pro quin-DÍÍÍÍM!

Por um milicentésimo de segundo, o time da gráfica estacou. Entreolharam-se. Quindim? Seriam eles?

As namoradas gostaram. Deram risada. Puseram-se a bradar impropérios contra o Quindim, contra todos os Quindins em jogo, alegremente chefiadas por Pimentinha. A voz da líder rimbombava, sonora e aguda e muito musical no ginásio fechado. Os garbosos e fardados funcionários da gráfica, até então senhores da situação, foram paulatinamente dando mostras de irritação. Pois bastava algum deles tocar ou mesmo apenas olhar para a bola e Pimentinha puxava:

- Olha o quin-DÍÍÍÍM! Chuta o quin-DÍÍÍÍM! Chuta! Chuta ele! Mata ! Mata o quin-DÍÍÍÍM!

Os agudos femininos estavam atordoando o time da gráfica. Sentiam-se cada vez mais envergonhados do fardamento amarelo-ovo, aquelas camisas laranja-douradas que tinham sido compradas num arroubo de paixão futebolística com considerável parcela do décimo-terceiro salário de cada um deles. Já não eram mais atletas. Já não eram mais jogadores. Nem sequer homens eram mais. Eram Quindins.

O jogo tinha virado. Os garotinhos cabeludos e sem fardamento estavam com dois gols de vantagem. Pimentinha não se continha:

- Lugar de quindim é na padaria! Fora, quin-DÍÍÍM! Fora!

Os jogadores da gráfica olhavam com ódio para as arquibancadas. Soou o apito marcando o final da partida. As namoradas riam, contentes. Abraçavam os vitoriosos, eles algo perturbados, elas trocando olhares cúmplices com as companheiras de arquibancada. Sorriam. Afinal, elas ganhavam.

0 Comments:

Post a Comment

<< Home