Sunday, January 09, 2005

Princesas de Ébano

Tinha então seis anos e ia entrar em novo colégio, para cursar a 1ª série do 1º grau (que hoje se chama ensino fundamental). Entrando também estava Maria Valéria, a única pessoa preta da turma. Ela levava os cabelos longos presos em trancinhas mas mesmo assim dava para ver que eles eram supercrespos - aquilo que, quem já morou em vila como eu, sabe que o povo chama de "cabelo ruim". Maria Valéria tinha a mesma idade que nós e estava banguela como todo mundo, e era só. Ela cometera a suprema heresia de nascer fêmea, preta e pobre.

Incrível a empatia que os humanos têm para o mal: era o primeiro dia de aula, quando se inicia a negociação de grupos e territórios, que poderá durar uma semana, um mês, até um semestre, mas não precisou haver negociação nenhuma para que a turma inteirinha, composta de WASPzinhos tupiniquins, decidisse em mudo assentimento que éramos *nós* contra *ela*. Assim foi, amen, e Maria Valéria, com seu jeito doce e sorriso fácil não conseguiu outra coisa senão desprezo e vileza de todos nós.

Ríamos das suas roupinhas meio tacanhas. Sussurravam as meninas no banheiro sobre o "cheiro" de Maria Valéria. Vários prendiam o nariz acintosamente ao passar por ela, que limitava-se a mirar o ofensor com olhos cheios de mágoa, como um cão que sabe que não pode reagir à agressão do homem porque está em tremenda desvantagem. Maria Valéria não tinha quase dinheiro e usava os lápis da caixinha dos perdidos para fazer seus desenhos. Como nenhuma criança perde lápis de cores fortes e chamativas, como vermelhos e verdes, as ilustrações de Maria Valéria traziam sempre cores fechadas em combinações funéreas: o céu violeta, a terra marrom, as pessoas pretas, todas pretas, com roupas pretas. Porque em algum lugar deveria haver iguais.

A mãe de Maria Valéria levava e buscava a pequena na escola todos os dias. Eu olhava respeitosa, assombrada e muda de vergonha para aquela Grace Jones, muito elegante em seus lindos e marcantes traços de princesa de ébano. Nos olhava brincando com a filha e eu sabia que ela sabia de todas as nossas perversões, do quanto éramos maus, cruéis, hediondamente maquiavélicos com sua menininha. Percebia que ela sentia que a alegria que tínhamos ao brincar de pega-pega com Maria Valéria era ruim porque só a aceitávamos na brincadeira se ela fosse o pegador em todas as vezes. Ela concordava sempre, sempre doce, sempre sorrindo seus dentes muito brancos de princesinha de ébano.

Na segunda série, Maria Valéria não estava mais lá. Talvez sua mãe Grace Jones tenha concluído que não valia a pena pagar para ter a filha maltratada. Talvez tenha depreendido que é por demais difícil vencer a maldade desse mundo, esse Grão Negro que trazemos de fábrica e que germina fácil. Senti um tremendo alívio, porque não precisaria enfrentar todo o dia o mesmo dilema: seguir os quase raivosos conselhos de minha mãe, que dizia que Maria Valéria era igual a mim e tratá-la como eu sabia (sim, eu sabia) que ela devia ser tratada ou juntar-me à turba e espezinhá-la, como era nosso costume. Eu oscilava loucamente entre esses dois extremos, o que fazia Maria Valéria muito curiosa. Geralmente, era a mim que ela se achegava, seus olhos dizendo "sim, eu sei, você me bate mas também me afaga, você me despreza mas também me alimenta, e se esse é o seu preço, OK, eu posso pagar". Quando ela me vinha, vinha-me também uma terrível vergonha de não repudiá-la e uma raiva cega que eu ainda não sabia do quê.

Vindo para cá de trem num calor opressivo, sentaram-se perto de mim uma esguia princesa de ébano e toda sua (vasta) prole de meninos de chocolate. Uma senhora, também negra, surpreendeu-me olhando para o mais arredio dos garotinhos com grande ternura. A senhora sorriu, pensando talvez que eu era boa. Ela estava enganada. O que eu fiz a Maria Valéria e tudo o que permiti que todos os meus nefastos coleguinhas fizessem não se apaga por olhar uma criança com carinho. Sim, eu carrego essa culpa e sim, ela não é expiável. Não há como saldá-la, quitá-la. O mal que fazemos não tem volta.

Maria Valéria talvez hoje seja uma mulher de negócios, uma dona de casa, uma mãe, uma amante, uma vendedora da Daslu, uma promotora de eventos, uma juíza de direito, uma CEO, uma gari de limpeza urbana, uma veterinária. Eu nunca vou saber, vinte e dois anos passados.

Maria Valéria é uma princesa guerreira e em todo esse cipoal de mágoa que carrego por tudo o que lhe fiz de mau e o que não lhe fiz de bom, desejo muito forte e muito fundo que ela nunca mais deixe que ninguém lhe pise. Que ela honre sua dinastia. Que guarde bem guardado, somente para os que a merecerem, aquele inesquecível sorriso alvo em que até os doces olhos cor de avelã sorriem.

0 Comments:

Post a Comment

<< Home