Você chegava. Arroxeado, porque entalou no osso da bacia e não ia nem vinha, e lá fomos nós para a cesárea. Que, você sabe, essa aqui não resiste a
take a walk on the wild side e queria um
delivery tão isento de ciência e seus analgésicos quanto possível, sequer cogitando de um corte para extração. Mas não teve jeito e você acabou vindo assim, de mansinho, quase silenciosamente, olhando tudo com enormes olhos azuis-berilo, azuis-turquesa (que mais tarde se tornariam esverdeados e finalmente castanhos), olhos de cristal acostumados ao escurinho e que ainda nada viam.
Foi desajeitado e encantador nosso começo, eu tirando suas roupas assim que ficamos a sós, porque era outono frio e logo lhe taparam todo. Precisando vê-lo nu e saber todos os detalhes daquele corpo que crescera do meu, um corpo sem marcas e sem história, como folha em branco. Eu não sabia como segurar você para alimentá-lo, ficamos os dois tentando várias coisas, aflitos. Não foi no primeiro dia, nem no segundo, foi em algum momento indefinido que aconteceu, que o seu corpo e o meu se encontraram com quase tanta perfeição quanto no período em que você estava lá dentro. Seus olhos turquesa fitavam extasiados a fonte de alimento e calor, meus olhos escuros advertindo todo o tempo que eu não era tão maravilhosa assim, porque apenas uma pessoa, cheinha de defeitos. Viu, você sabe, você sempre soube, desde o começo, que defeitos existem em tudo e em todos, que defeitos às vezes quase são qualidades e que amar alguém significa amar também seus defeitos - eu diria, *principalmente* seus defeitos.
Você veio vindo e virou meu mundo de ponta-cabeça. Muitíssimo mais ativo do que eu, foram intensas nossas primeiras noites - as noites dos primeiros seis meses -, ambos acordados, eu tentava lhe satisfazer de todas formas e nada era suficiente. Chegar em casa passou a ser obliterantemente
bittersweet, aquele corpinho doce, quente, macio, cheio de necessidades e queixas, e essa criatura tão limitada que lhe escreve era com quem escolhera contar. O engraçado é que nunca tive dúvidas e, dentre tantos conselhos diferentes (e absurdos), sempre soube que a resposta viria daquela fusão de instinto com amor que só mesmo você poderia despertar em mim.
Muito tempo passou desde então. Foram várias aventuras, vi o tempo esculpir a sua face e desenhar novos contornos no seu corpo. Às vezes brigamos, você fica brabo, quase sempre com razão. São muitas perguntas, muitas descobertas, e em dias mais cheios (e ser adulta é ter dias cheios) fico completamente atordoada e paradoxalmente feliz com a sua falação ininterrupta, porque conversamos, porque você conta coisas, enquanto eu, na sua idade, não contava absolutamente nada para ninguém. Você me sorri sempre seu sorriso de aparelho, com os olhos puxados do seu pai que acaba de levá-lo para a casa dele. É uma casa feliz, cheia de gente boa e amiga, que nos quer muito bem. E lá vai você, cada vez mais um pouco para longe, sorrindo, de mansinho, de um jeito inesperado que, na hora, quase não dói. Silenciosamente.