O calo se cria quando uma região é superestimulada. Um estímulo pode ser uma coisa aprazível ou não, mas mesmo quando aprazível, ocorrendo em excesso ele cria ferimentos. E os ferimentos, tentando se defender do agente agressor, criam calos. Também podem ocorrer ferimentos que resultarão em calos sem que a região seja superestimulada: basta que ela seja mais sensível, suscetível ou frágil do que o restante, ou do que a média da amostragem que baseou a experiência.
Tem um calo no calcanhar do meu pé. Do lado de fora, parecendo um esporão, mas não é. É um calo. Ele aconteceu porque estava andando muito e usando sapatos planos (ou quase), o que fez com que o peso ficasse incidindo sempre ali no mesmo lugar, e sem meia, e com essa minha pisada meio bruta. Então passei ao usar sapatos com (mais) salto.
Tem um calo na planta do meu pé. Do lado de baixo, parecendo um couro de sola, mas não é. É um calo. Ele aconteceu porque, como fiquei com o calcanhar calejado de andar longas distâncias com sapatos planos (ou quase), passei a usar sapatos com salto e o resultado foi um mero deslocamento do peso, ou da pisada, ou de ambos, gerando um deslocamento do lugar a ser calejado.
Tem um calo na minha alma, que reveste ela quase toda. Fica em volta dela, como uma redoma de vidro, mas não é. É um calo. Ele aconteceu porque fui colocando muito da alma no que fazia, sem me dar conta do alto grau de sensibilidade e suscetibilidade que ela apresentava. Por isso, a alma foi-se ferindo gradualmente, não grandes lesões que acabassem com ela ou a incapacitassem, mas aquelas pequenas (e médias) que são repetidas com freqüência ou, ao menos, com periodicidade, como no dito popular ‘água mole em pedra dura tanto bate até que fura’. Porém, ‘furar’ nunca foi opção para essa alma.
Tem um calo na minha mente. Revestindo-a, um envoltório muito preto, grosso e amorfo – que, na verdade, não protege nada, apenas não permite que quem está de um lado veja o que acontece no outro – como um saco de lixo 10 micras, mas não é. É um calo. Ele aconteceu porque alguma coisa precisava proteger a alma, essa alma mundana com mania de madre teresa, e assim a mente ia na frente e se postava como abre-alas, como infantaria, sempre alerta. Por isso, a mente foi-se magoando em parcelas infindáveis e que não cessavam nunca, como prestações de contrato do SFH: diferidas, inelisíveis e sempre aumentando.
É um processo autofágico, ter uma proteção que não protege.
Nisso, os calos dos pés ganham disparado.